CF por ele mesmo. O mito do DE (parte 1/2)
CELSO FURTADO POR ELE MESMO
em
O MITO DO DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO
(parte 1/2)
Ed. Paz e Terra, 1974
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A função principal do mito é orientar, num plano intuitivo, a construção daquilo que Schumpeter chamou de visão do processo social, sem a qual o processo analítico não teria qualquer sentido. Assim, os mitos operam como faróis que iluminam o campo de percepção do cientista social, permitindo-lhe ter uma visão clara de certos problemas e nada ver de outros, ao mesmo tempo que lhe proporciona conforto intelectual, pois as discriminações valorativas que realiza surgem ao seu espírito como um reflexo da realidade objetiva. (...) (p.15)
A literatura sobre desenvolvimento econômico do último quarto de século nos dá um exemplo meridiano desse papel diretor dos mitos nas ciências sociais: pelo menos noventa por cento do que aí encontramos se funda na idéia, que se dá por evidente, segundo a qual o desenvolvimento econômico, tal qual vem sendo praticado pelos países que lideraram a revolução industrial, pode ser universalizado.
Com o campo de visão da realidade delimitado por essa idéia diretora , os economistas passaram a dedicar o melhor de sua imaginação a conceber complexos esquemas do processo de acumulação de capital no qual o impulso dinâmico é dado pelo progresso tecnológico, entelequia existente fora de qualquer contexto social. Pouca ou nenhuma atenção foi dada às consequências, no plano cultural, de um crescimento exponencial do estoque de capital. (...) Daí a irritação, provocada entre muitos economistas, pelo estudo The Limits to Growth, preparado por um grupo interdisciplinar, no M.I.T., para o chamado Club de Roma. (p.16)
A importância do estudo feito para o Clube de Roma deriva exatamente do fato de que nele foi abandona a hipótese de um sistema aberto no que concerne à fronteira de recursos naturais. (...) Uma vez fechado o sistema, os autores do estudo se formularam a seguinte questão: que acontecerá se o desenvolvimento econômico, para o qual estão sendo mobilizados todos os povos da terra, chega efetivamente a concretizar-se, isto é, se as atuais formas de vida dos povos ricos chegam efetivamente a universalizar-se? A resposta a essa pergunta é clara, sem ambiguidades: se tal acontecesse, a pressão sobre os recursos não renováveis e a poluição do meio ambiente seriam de tal ordem (ou, alternativamente, o custo do controle da poluição seria tão elevado) que o sistema econômico mundial entraria necessariamente em colapso. (...)
Antes de considerar que significado real cabe atribuir a essa
profecia, convém abordar um problema mais geral, que o homem moderno tem tratado de eludir. Refiro-me ao caráter predatório do processo de civilização, particularmente da variante desse processo engendrada pela revolução industrial. (...) (p.19)
(...)não podemos deixar de reconhecer que existe ampla informação sobre o processo de industrialização em países de diversos graus de desenvolvimento econômico. Porque dispomos dessa informação, já não é possível aceitar a tese segundo a qual "na medida em que o resto da economia mundial se desenvolve economicamente, ela seguirá basicamente os padrões de consumo dos Estado Unidos." (...)
Captar a natureza do subdesenvolvimento não é tarefa fácil: muitas são as suas dimensões e as que são facilmente visíveis nem sempre são as mais significativas. Mas se algo sabemos com segurança é que subdesenvolvimento nada tem a ver com a idade de uma sociedade ou de um país. E também sabemos que o parâmetro para medi-lo é o grau de acumulação de capital aplicado aos processos produtivos e o grau de acesso à panóplia de bens finais que caracterizam o que se convencionou chamar de estilo de vida moderno. Mesmo para o observador superficial parece evidente que o subdesenvolvimento está ligado a uma maior heterogeneidade tecnológica, a qual reflete a natureza das relações externas desse tipo de economia.
(...) as enormes transformações ocorridas [na economia mundial no correr do século XIX, sobretudo na sua segunda metade] se ordenam em torno de dois processos: o primeiro diz respeito a uma considerável aceleração na acumulação de capital nos sistemas de produção, e o segundo a uma não menos considerável intensificação do comércio internacional. Ambos os processos engendraram aumentos substanciais da produtividade do fator trabalho, dando origem a um fluxo crescente de excedente que seria utilizado para intensificar ainda mais a acumulação e para financiar a ampliação e diversificação do consumo privado e público.Financiando os investimentos infraestruturais em todo o mundo em função dos interesses do comércio internacional, a Inglaterra promoveu e consolidou a implantação de um sistema de divisão internacional do trabalho que marcaria definitivamente a evolução do capitalismo industrial. Esse sistema tendeu a concentrar geograficamente o processo de acumulação de capital, pelo simples fato de que, em razão das economias externas e das economias de escala de produção, as atividades industriais - às quais correspondia o setor da demanda em mais rápida expansão - tendem a aglomerar-se.
A reação contra o projeto inglês de economia mundial não se fez sentir. A segunda fase da evolução do capitalismo industrial está marcada por essa reação: é o período de consolidação dos sistemas econômicos nacionais que formariam o clube das nações desenvolvidas no século atual. (p.22-23)
Porque este e não aquele país passou a linha demarcatória e entrou para o clube dos países desenvolvidos, nessa segunda fase da evolução do capitalismo industrial que se situa entre os anos 70 do século passado e o primeiro conflito mundial, é problema cuja resposta pertence mais à história que a análise econômica. Em nenhuma parte essa passagem ocorreu no quadro do laissez-faire: foi sempre o resultado de uma política deliberadamente concebida com esse fim. (p.25)
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PS. Síntese por Ceci V. Juruá. Coordenadora do Instituto Celso Furtado / Academia Paulista de Direito.
(RJ, 07/12/2024).
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