O Centenário de RAUL PREBISCH, por Celso Furtado. Texto N.1
CELSO FURTADO,” EM BUSCA DE NOVO MODELO. Reflexões sobre a crise contemporânea”
Cap. VI. O CENTENÁRIO DE RAUL PREBISCH
(SP : Editora Paz e Terra, 2002)
Texto N.1, selecionado para o ICF/APD *
_______Celso Furtado, sobre Prebisch e Cepal*
“As Nações Unidas haviam criado a COMISSÃO ECONÔMICA PARA A AMÉRICA LATINA em começos de 1948, fixando sua sede na capital do Chile, país autor da proposta e que muito se empenhara em sua aprovação. Mas não fora fácil encontrar alguém à altura para dirigir sua secretaria executiva.
Nesses primeiros meses estávamos absorvidos em nossas tarefas... Inesperadamente circulou um estudo de natureza teórica preparado por um consultor independente: Raúl Prebisch. Raúl Prebisch chegara à CEPAL em fevereiro de 1949. Criador e diretor geral do Banco Central da Argentina, de 1934 à 1943, ele havia comandado a bem sucedida política de estabilização, particularmente em 1938, e recebera elogios dos mais variados círculos internacionais . Era, sem lugar a dúvida, o único economista latino- americano de renome internacional.
(...)
É de imaginar que hajam pululado memorandos chamando a atenção para os traços particulares do personagem, que estava longe de ser o que se apodava de “homem de esquerda”. Era, contudo, um impenitente heterodoxo, insensível ao charme discreto da boa doutrina que justificava a ordem econômica internacional e condenava tantos países a se perpetuarem como exportadores de produtos primários. Desconhecer a autoridade dos pontífices da ciência econômica derivava de ignorância ou de “arrogância”. Acusavam Prebisch ... de haver sido o introdutor, na América Latina, dessa coisa, considerada abominável, que era a prática dos câmbios múltiplos . (...) Como se não bastasse, Prebisch exigira autonomia de decisão no recrutamento de pessoal em início de carreira, que era realmente o que importava.
Desde que eu lera o primeiro trabalho preparado por Prebisch – que passou a ser referido como o Manifesto – pensara comigo : temos agora a alavanca necessária para demover as grandes resistências que enfrentamos no Brasil. Pus-me imediatamente em ação , traduzindo para o português o texto publicado no Brasil antes de circular como documento oficial das Nações Unidas. Mais ainda: consegui inserir o trabalho na prestigiosa Revista Brasileira de Economia, chasse gardée do professor Eugênio Gudin. A publicação do ensaio de Prebisch nessa revista, em setembro de 1949, teve uma repercussão sem precedente. Minha ideia de retirar o texto dos canais burocráticos e apresentá-lo à comunidade de economistas e pessoas interessadas em política econômica fora mais que feliz. Na verdade, foi graças a isso que o debate em torno das ideias da CEPAL cedo ganhou precisão e amplidão no Brasil, enquanto nos demais países o debate alimentou- se de informações fragmentárias.
Mas as sementes iam germinando. (...) O documento[1] apareceu em duas versões sucessivas, sendo que a segunda, que veio a prevalecer, logo se afirmou como uma interpretação original das economias latino- americanas. Nele Prebisch fazia uma exposição de suas ideias sobre os desequilíbrios dos balanços de pagamento, os quais ele analisava a partir dos fluxos de ouro, ou seja, da acumulação e da desacumulação de reservas na economia dominante, a que chamava de centro principal. Daí derivava os princípios de uma política anticíclica para os países periféricos, como qualificava os latino-americanos. Em conexão com o problema do desequilíbrio externo, expunha o que denominava de “limites da industrialização”, introduzindo considerações sobre a inflação e as políticas de controle cambial.
Ao ler esse texto, percebi que necessitávamos de um trabalho de teorização autônomo a partir de nossa realidade latino-americana. Sem autonomia para teorizar no campo das ciências sociais somos reduzidos a um simples mimetismo estéril.
A CEPAL ainda era vista como uma instituição que atropelava a Organização dos Estados Americanos, de docilidade comprovada. O Conselho Interamericano Econômico e Social, da OEA, simbolizava a cômoda, ainda que falsa, harmonia nas relações hemisféricas. Porque desviar para as Nações Unidas, essa arena tão menos segura, assuntos que vinham sendo tratados com êxito no âmbito pan-americano ? Essa a razão pela qual o governo de Washington empenhara-se em evitar a criação da CEPAL, abstivera-se no momento da votação e fazia ‘démarches’ para liquidá-la.
As coisas evidentemente se agravaram com a ascensão de Prebisch à Secretaria Executiva. (...) Como se não bastasse, Prebisch exigira autonomia de decisão no recrutamento de pessoal em início de carreira, que era realmente o que importava. Tudo isso transformara a nossa instituição em um caso ‘sui generis’ nas Nações Unidas, um precedente que não podia deixar de suscitar preocupação em certas esferas do poder.
Quando partimos para a Conferência do México, em 1951, as informações que circulavam eram desencorajadoras. Corria a notícia de que, na reunião de consulta dos chanceleres, os norte-americanos haviam obtido a concordância dos países-chave para liquidar a CEPAL. Eu fora ao Brasil sondar a direção do vento no Itamarati. O governo Vargas começava apenas a se instalar, o que dificultava apreender em que direção ele marcharia no plano internacional. Sabia-se que o governo norte-americano se antecipara, obtendo a criação de uma nova comissão mista, e que o novo ministro das Relações Exteriores , João Neves da Fontoura, empenhava-se em concretizar esse projeto, já tendo obtido de Washington uma generosa promessa de financiamento. O certo é que o novo chanceler não devia ter ideia clara do que vinha a ser a CEPAL, e era, sabidamente, pessoa inclinada a buscar convergência de pontos de vista com os interesses norte-americanos, públicos e privados.
Desde o início da conferência, sentia-se que não havia consenso. (...) um amigo de infância, Cleantho de Paiva Leite, alto funcionário da Presidência da República, e que também trabalhara nas Nações Unidas, estava nesse momento requisitado no gabinete de Vargas e nos serviu de intermediário para comunicar ao presidente a situação de impasse que se esboçava no México. O homem-chave na conferência era, na verdade, o segundo da delegação brasileira: o diplomata Miguel Osório de Almeida. Ele acreditava na CEPAL, mas não recebia qualquer instrução de seu ministério. Afinal, praticamente nos últimos momentos, encontrei-o sorridente, aparentemente recuperado da tensão dos dias anteriores. Miguel Osório me disse : “Chegou o telegrama. “ Era uma mensagem vinda diretamente do Palácio do Catete, informando que o presidente Vargas via com interesse que a autonomia da CEPAL fosse defendida.
A batalha estava ganha. A partir daí, a CEPAL se transformaria no símbolo do esforço de união da América Latina em sua luta para escapar das tenazes do subdesenvolvimento. “
O estudo apresentado na Conferência do México era vasto , e seus contornos incertos. Havia que preocupar-se com ‘obstáculos fundamentais’ em setores básicos, principalmente energia e transporte, com a insuficiência da capacidade para importar, com a vulnerabilidade às flutuações e contingências externas, com os problemas do setor agrícola com as necessidades insatisfeitas de obras públicas, de educação, com a concentração industrial em certas áreas, com a produtividade, com a inflação.
Esses temas voltariam à baila, no Brasil, por ocasião da Conferência de Quitandinha, em maio de 1953. Foi num clima de grande tensão política e sob cerrado fogo na frente ideológica que o documento ‘Tecnica de planificação” (com título defensivo de ‘Estudo preliminar sobre a técnica de programação do desenvolvimento econômico’) foi apresentado em mais essa conferência da CEPAL.
(...)
O que marcou a Conferência de Quitandinha foi que o documento-chave apresentado pela CEPAL – que acabou conhecido com o nome de ‘Técnica de programação – suscitou ataques de vários lados. (...) O professor Gudin publicou no ‘Correio da Manhã’ uma série de cinco artigos com o título “A mística do planejamento’, com ataques diretos à nossa ‘Técnica de programação’. Prebisch respondeu com outra série de artigos , que foram publicados no Diário de Notícias em setembro do mesmo ano, com o título “A mística do equilíbrio espontâneo da economia’.
Por ocasião de seu centenário, comemorado em 2001, cabe indagar: qual a herança de Raul Prebisch ?
(...)
Dessa percepção em torno da propagação dos ciclos veio-lhe a percepção de que o sistema de divisão internacional do trabalhos surgira para atender prioritariamente aos interesses dos países que estão à frente do processo de industrialização. “Os países produtores e exportadores de matérias primas estão ligados a esse centro em função de seus recursos naturais, constituindo assim uma vasta e heterogênea periferia, incorporada ao sistema de diferentes formas e em graus diversos”, diz ele.
Essa visão global da economia capitalista, que permitia nela identificar uma fratura estrutural gerada pela lenta propagação do progresso técnico e perpetuada pelo sistema de divisão internacional do trabalho então existente, constituiu certamente a contribuição teórica maior de Prebisch e foi o ponto de partida da teoria do subdesenvolvimento que dominaria o pensamento latino-americano e teria amplas projeções em outras regiões do mundo.
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* Seção reservada à Presidência e à Coordenação do ICF, e a professores designados pela Presidência da APD. Consistirá em selecionar e publicar
extratos da obra de CF, destacando trechos relevantes para entender momento atual do Brasil e oferecer uma visão do conjunto da obra de CF
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